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O dia vinte

A metade do primeiro mês do ano sempre traz decepção. Esperei dezembro inteiro pelo ano novo e os últimos meses do anterior, embora tenham corrido cansados, traziam um leve frescor de novidades – novidades raramente parecem ruins. No entanto, janeiro é o mês mais chato. Os gastos com as compras feitas há poucas semanas atrás já liberaram todos os hormônios do prazer que podiam e  o primeiro mês é um mês de contenção ou de endividamento para a maioria.

Mas muito mais que qualquer coisa relacionada a dinheiro, não há nada de fresco em janeiro, apenas uma lufada quente daquele cansaço que parecia que iria acabar depois do pequeno recesso das festas. É um cansaço silencioso, sem o frenesi dos jingles de natal, quase sem esperança. É como acordar de um sonho tão bom e passar o dia inteiro de mau humor, porque, afinal, era só um sonho.

É sempre uma decepção voltar à realidade depois das fantasias do natal e do réveillon. Mas, é ainda pior chegar no dia vinte, quando o trabalho já se acumulou na mesa que há tão pouco tempo tinha sido limpa e renovada com objetos novos, e me dar conta de que estou tão perdida novamente. O tempo passou tão rápido e tão cheio, que deu o dia trinta e um de dezembro e eu esqueci de fazer a lista de resoluções, eu que sempre fiz lista de resoluções de ano novo!

A mudança de corte de cabelo, a monografia, a retomada dos estudos de fotografia, o próprio ato de fotografar, tão negligenciado em meio ao trabalho, estudo e outros compromissos, as listas de livros lidos que parecem diminuir a cada ano, a promessa de assistir mais filmes e quem sabe de ver séries novas ou acompanhar as antigas, voltar a pedalar, parar de perder tanto tempo atualizando as timelines…desativar temporariamente as contas em redes sociais: ficar por fora, para ver se consigo ficar mais por dentro.

“Fica pro ano que vem” agora é uma realidade distante  e nada agradável. O que tem para se resolver, tem de ser resolvido agora. Bate um desespero…o final de semana podia me ajudar a organizar uma agenda e arrumar a mesa de estudos em casa e eu espero ansiosamente por ele, mas o final de semana é uma falácia. Nessas horas me pergunto qual o sentido da vida ou se deveria chutar o balde. Mas ter que limpar a bagunça depois de chutá-lo não parece promissor.

Eu chutaria o balde acreditando tanto na vida como quando acreditei na passagem de um ano para o outro. Expectativas e esperanças que parecem indestrutíveis até a realidade do primeiro dia útil bater à porta e começar a destruir lentamente qualquer sentimento de euforia. Não que eu não acredite na vida e não que eu não tenha sonhos. Mas me falta quem me pague a passagem e me sustente na Irlanda enquanto sigo em viagem “para me descobrir”.

Eu tenho que me descobrir aqui mesmo, desde a cadeira giratória do trabalho, escrevendo em uma pausa que eu mesma me concedo, enquanto a sala desaba em protocolos e emissões de certificados. É aqui mesmo que tenho que me encontrar, arquivando processos e analisando documentos. Não porque eu queira estar aqui, desconfio até que nunca estou aqui de fato. Faço meu trabalho por pura vergonha na cara, mas estou sempre com a cabeça em outras histórias.

O mundo, aliás, está cheio delas: principalmente histórias de pessoas que jogaram tudo pro alto e foram seguir seus sonhos. Como recompensa para tão corajoso ato, tudo aconteceu, todas as coisas boas, maravilhosas e inesperadas, todo o sucesso e dinheiro do mundo surgiram do nada, trazidos pela Vida, que bateu à porta vestida de amarelo e com sorriso largo como num comercial de pasta de dentes, pois ela é justa com aqueles que abandonam a mediocridade de precisar trabalhar e que têm dinheiro no banco para fazer a viagem de descoberta.

De repente, surge uma bela casa e um lindo escritório, porque gente de sucesso, vestida de pijamas, caneca de café em punho e chinelos, trabalha mais do que qualquer um, mas trabalha em casa. Muitas viagens de avião, palestras motivacionais e best-sellers contando como consegui ficar rico seguindo meus sonhos escondem a dura realidade das coisas e da gente que precisa trabalhar oito, nove, dez horas por dia, fora e longe de casa, que quando chega ao lar cansada ainda tem os trabalhos domésticos, e quando finalmente deita na cama não esquece que tem em si todos os sonhos do mundo. O quarto, no entanto, é um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é.

A minha sorte é que escrevo e descrevo as ilusões da vida, as minhas, pelo menos. E ironicamente, elas me alimentam de sonhos desiludidos, talvez amadurecidos, salvos do desejo que corrompe a razão, mas que não deixam de ser sonhos que me impelem a continuar, pois eu também tenho em mim todos os sonhos do mundo. Eu, que menosprezo minhas qualidades quase sempre, tenho que seguir acreditando um bocado em mim, para não desabar no dia vinte de janeiro, fechada em uma sala de onde se enxerga o topo de um coqueiro, num dia nublado e sem saída.

Ou sem saída que exija chutar baldes, porque eu já chutei tantos baldes que nunca deram onde eu queria, mas que deram em algum lugar. E nesses lugares algumas coisas foram boas, outras ruins e umas tantas ruins e boas ao mesmo tempo. De tudo isso não tirei um best-seller nem um guia de vida de sucesso, mas uma vida real e talvez uma mente com alguma perspicácia para ser capaz de observar que para tudo existe um outro lado e que se sabe humana demais pra esperar por finais impecáveis, mesmo de um texto. Por isso agora, aqui do dia vinte de janeiro, depois de viver dramas e conhecer infernos por pura ansiedade por resoluções, meu desespero não resolve nada e é plácido. Levemente melancólico, levemente ácido.

Fotografia: txr53 em Lomography

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