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Frida: a (re)criação de si mesma na arte

Frida é um mito: as sobrancelhas unidas, o exotismo, a rebeldia e certa paleta de cores são símbolos capazes de identificar a obra, criada por ela sobre si mesma, em boa parte do mundo. No entanto, ninguém disse mais sobre seu país de origem ao falar de si em autobiografias pintadas. O surrealismo próprio, mas também mexicano, um estilo vindo de dentro de Frida, da vida que é fruto de experiências em sua terra natal ao longo do tempo, por entre e além das tragédias, foi proclamada pelos surrealistas europeus, ainda que ela própria não acreditasse muito nem no surrealismo nem em si mesma.

frida kahlo fotografia

A história, como todo mito, é cheia de coisas inacreditáveis. Frida sobreviveu como que por milagre a um terrível acidente de ônibus que sofreu aos 18 anos e que a manteve confinada na cama, com a coluna envolta em um colete de gesso, por vários meses – e por longos períodos, com intervalos, durante toda a sua não muito longa existência. Foi graças ao pai, Guillermo Kahlo, um fotógrafo alemão que também pintava telas, que ela começou a pintar para valer: logo depois do acidente ele deu à filha inválida um cavalete adaptado para a cama e todo o material necessário para a pintura. Antes, ainda na infância, ela contraiu poliomielite, que a deixou com a perna direita pouco desenvolvida, a mesma que seria amputada nos seus últimos meses de vida, e que também a tinha deixado muito tempo presa à cama. Nesse período ela tinha uma amiga imaginária e a imaginação era essencial para que ela pudesse se sentir mais viva: a doença, a dor e a tragédia viraram parte dela, ela se acostumou a isso e seus quadros traduzem todas as dores que sua gargalhada sonora, seu riso sarcástico e seu ar sedutor e inteligente escondiam.

A coluna partida, 1944

Como qualquer artista sofre influências de quem admira, Frida foi bastante influenciada por Diego Rivera, com quem viveu por 25 anos, entre um divórcio e um segundo casamento. Apesar das brigas – certa vez ela disse que duas tragédias tinham acontecido na vida dela, a pior era ele -, Frida e Diego se amaram intensamente e de um jeito pouco convencional. Ele era muralista e comunista convicto, julgava que as pinturas em quadro eram o tipo de arte burguesa em decadência, que fica confinada à propriedade privada, enquanto os murais podem ser vistos e apreciados por toda a classe trabalhadora, desprovida de condições financeiras para comprar obras de arte. Ele pintava paredes contando histórias que exaltavam o povo mexicano e os operários da fábrica, obras que falavam da revolução social e tinham como heróis, além dos trabalhadores, Karl Marx, Vladimir Lênin, Josef Stálin e Leon Trótski. Em suma, para Diego os murais são arte para o povo, pertencentes a ele.

Casamento de Frida Kahlo e Diego Rivera

Entretanto, Frida pintou telas a vida toda, que nos primeiros anos de pintura costumavam ser bem pequenas. Elas eram detalhadas, com pinceladas sutis e precisas, bem diferentes das pinceladas generosas e grandiosas de Rivera. O que havia de mais interessante entre Frida e Diego é que os dois eram completamente apaixonados pela arte um do outro; eles se admiravam, orgulhavam-se, interessavam-se imensamente pelo crescimento artístico do outro. Ele dizia que jamais seria capaz de pintar como Frida e que não havia nenhum pintor ou pintora à sua altura na contemporaneidade. Quando Rivera conheceu Frida, ele já era bastante famoso mundialmente, ainda assim sentiu-se maravilhado pelas primeiras pinturas dela e por isso sempre a incentivou a seguir seu estilo original e continuar pintando seus próprios sentimentos, ao invés de tentar imitar alguém ou um movimento. No entanto, isso não foi difícil para ela. Embora ao longo de sua vida, em especial nos últimos anos, Frida tenha se queixado de não conseguir pintar algo que tivesse uma função social clara, que proporcionasse uma transformação social pela arte, o fato é que foi justamente o contrário – retratar a própria realidade – que a tornou uma grande artista; ela identificou o sofrimento do México com suas próprias dores. E fez isso de maneira genial.

Quatro habitantes da Cidade do México, 1938

Ela era do Partido Comunista e ao contrário do que pode parecer, não foi Rivera quem a levou, Frida já havia se filiado antes de conhecê-lo. Mas sua atitude em relação à política era bastante singular. Ela tinha sonhos para o povo mexicano, odiava vê-los sofrer, se dava muito melhor conversando com pessoas simples em mercados e feiras do que conversando com intelectuais e artistas, que ela julgava afetados e prepotentes demais, especialmente os estrangeiros. Os Estados Unidos ela chamava de Gringolândia e detestava o que para os ianques é o centro da vida: a ambição. Ela dizia que não tinha pretensão de ser bem-sucedida, “ser alguém”, como os gringos diziam: ser a “gran caca” não a interessava. Ela jamais teve pretensão de ser uma grande artista e embora quisesse viver de sua arte desde que pintou seus primeiros quadros, Frida não fez nenhum esforço para torná-los vendáveis: ela realmente não conseguia pintar o que não fosse seu sentimento mais profundo e era modesta demais para acreditar que o que pintava tivesse algum valor.

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Autorretrato na fronteira entre o México e os Estados Unidos, 1932

O tipo de sentimento pouco alinhado com qualquer doutrina que seja, mesmo a do partido, e a ideia de que todas as coisas e seres estão inevitavelmente interligados, tal como pregava o antigo povo asteca, ancestral dos mexicanos, era o que a tornava comunista. Provavelmente ela sentia isso de forma muito mais intensa e genuína que muitos integrantes do partido, inclusive Rivera, que era fascinado pelos Estados Unidos tanto quanto reclamava do México. Embora nos últimos anos de vida ela tivesse tentado seriamente pintar algo que seguisse a linha do partido – e escreveu em seu diário: “Pela primeira vez na minha vida, a minha pintura tenta ajudar a linha traçada pelo meu partido: REALISMO REVOLUCIONÁRIO” -, Frida continuou pintando sobretudo a si mesma e seus próprios sentimentos, tanto em autorretratos quanto em naturezas-mortas, ainda que permeados de suas ideologias partidárias e suas crenças, que iam desde a revolução comunista à visão holística do mundo.

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O marxismo trará saúde aos doentes, 1954

Frida conseguia expressar o que ia em seu interior em incríveis pinturas surrealistas, apesar de não seguirem o movimento do início do século XX. O surrealismo, enquanto movimento, era uma válvula de escape para os desiludidos do Velho Mundo, sobretudo artistas e intelectuais que tentavam escapar da lógica do mundo moderno por meio da busca do que ia dentro do subconsciente de cada um; era uma tentativa de superar a realidade. Frida fantasiava, mas isso era fruto de sua própria vida e do lugar em que vivia, dos momentos de solidão que passou na cama, de seu temperamento e do que absorveu da cultura mexicana, repleta de ídolos pré-colombianos, combinados com rituais cristãos à moda mexicana. Pintar, para ela, era um jeito de encontrar um equilíbrio entre seu interior, tão vivo, com o mundo; era uma forma de se conectar à realidade. Isso a tornava admirável, mais do que aos próprios mexicanos, aos olhos dos europeus, incluindo Salvador Dalí e Pablo Picasso, importantes expoentes do movimento surrealista na Europa.

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O que a água me deu, 1938

Além de se representar na pintura, ela escreveu muitos diários, em que conta histórias por vezes tão exageradas e fantasiosas como seus quadros, mas nos quais ela expôs genuinamente suas dores. Na frente das pessoas Frida representava muita alegria e vigor, como se não se importasse nem um pouco com as dores e limitações físicas e todas as cirurgias e fusões de vértebras que tinha que fazer. Fingia não se incomodar com as traições de Diego, ficava amiga das amantes dele e fazia piadas disso. Seus quadros, entretanto, assim como as cartas a Diego e suas tentativas de suicídio nos últimos anos de vida, revelam a tristeza profunda em que ela vivia. Quando teve que amputar a perna, ela fez no diário um desenho dos pés em um pedestal e escreveu “Piés, para qué los quiero, se tengo alas pa’volar”. Para os amigos ela dizia, tirando sarro, que era a Frida pata de palo – Frida perna de pau -; era assim que seus amigos a chamavam na infância por conta da perna mais fina acometida pela poliomielite.

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Uma das últimas páginas do diário de Frida, fazendo alusão à amputação de sua perna

Havia dois motivos para Frida fazer piada com a própria vida e demonstrar apenas alegria aos outros: por um lado, era uma questão de dignidade pessoal esconder suas dores – mesmo tornando-as tão claras em suas telas e talvez por isso elas sejam tão pujantes -, por outro lado, Frida realmente queria ter vida, ainda que tivesse desejado a morte tantas vezes. Esse sentimento dual era próprio da crença da natureza dialética: assim a morte é representação da vida, como a vida é da morte. Tudo está ligado. Ela desejou muito ter filhos, mas nunca conseguiu e sofreu diversos abortos, sua coluna quebrada não conseguia segurar o feto. Ter filhos é uma forma de permanecer vivo, ela sabia bem disso e é provável que essa impossibilidade a tenha feito se reproduzir tanto em sua obra. Ao olhar suas telas por um tempo, sentimos como se ela estivesse aqui. Ela está viva em sua obra e permanecerá.

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