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Crônicas

Ser mãe na pandemia

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Pessoas privilegiadas, mesmo sendo privilegiadas, encontram muitas razões para sofrer. Eu me senti assim muitas vezes, alguém com possibilidades, mas sempre sofrendo para fazer escolhas, para aceitar derrotas, aceitar o que não era do jeito que eu queria. E às vezes eu via pessoas com muito menos do que eu, com muitas limitações, e elas pareciam mais bem resolvidas na vida, mais alto astral, como se o fato de não poderem fazer todas as coisas lhes tivesse dado uma habilidade de lidar bem com o que está dado. Está dado, então, o que resta para sofrer menos, é lidar bem com isso.

Quando me tornei mãe, eu compreendi isso bem. A maternidade tem um lado muito bonito e nós adoramos olhar para ele. Difícil é olhar para o outro lado. No entanto, toda mãe quer que enxergem como é difícil ser mãe. E não se trata somente da dificuldade física de lidar com uma criança, do desgaste do corpo. É uma dificuldade existencial.

A maternidade para mim foi principalmente isso, uma dificuldade existencial. Porém, eu não estava muito disposta a sofrer por isso, senão eu sofreria demais. Ao invés disso, eu queria olhar o lado bom das coisas e então eu procurei desenvolver essa habilidade do “está dado”. Está dado, então vamos tentar fazer o melhor, vamos tentar fazer com o que tem.

Pode ser de difícil compreensão para quem não passou pela morte e renascimento da individualidade que é tornar-se mãe, mas é comum puérperas passarem por emoções nebulosas, muitas vezes chamadas de luto mesmo. O que eu acrescentaria é que esse estado de puerpério é maior do que os 45 ou 60 dias que a convenção nos diz durar. Ninguém morre e renasce num período tão curto. Assim como a criança demora para criar independência gradual da figura materna, a mãe também demora a se reconstruir como entidade individual.

Não é exagero o que eu estou dizendo e tenho certeza de que mães entenderão o meu relato. Quando nasce um filho nosso, a gente se apaga um pouco. Todas as demandas estão voltadas para a criança e o nosso corpo também ainda pertencerá a elas por muito tempo. É difícil para nós, também, fazermos essa transição.

Quando uma mãe, em desespero semiconsciente, tenta se desvencilhar dessa condição e se atira no retorno ao trabalho ou gasta horas em salão de beleza, é julgada por quem está próximo: “Não liga pro bebê, prefere ficar bonita, prefere ganhar dinheiro, quer distância, não quer cuidar do próprio filho”.

É claro que existem relações desequilibradas, nós somos uma sociedade de desequilíbrios, é sempre bom lembrar que não existe nada muito bem ajustado. Mas eu diria que uma minoria realmente não se importa com os filhos, uma minoria é realmente negligente e não sente amor nenhum pelo rebento.

A maioria de nós está tentando desesperadamente, às vezes silenciosa e muito discretamente, se agarrar a um fio de nós mesmas. Muitas vezes nos assombram exemplos da infância, de avós ou mães ou tias ou vizinhas ou mães de amigas que viveram a vida dedicada ao papel de mãe-cuidadora.

Desgastaram seus corpos, enrijeceram seus joelhos, seus gestos se tornaram práticos e pouco graciosos. São vultos de nossa memória em que braços matronais passam automáticos, sempre ocupados em levar pratos para a pia, sempre limpando alguma coisa. Passam o dia em casa, encontram as vizinhas à tarde. Raramente saem da rua onde moram. Encontram prazeres nas coisas mais corriqueiras, e mesmo assim, muitas guardam mágoas inconfessas por décadas.

A minha avó passou os últimos anos de lucidez lembrando diariamente as agruras que sofreu por culpa do meu avô e porque teve que criar cinco filhos. Com meu avô morto há mais de uma década, ela ainda acordava de manhã zangada com o passado e jogava os rejeitos da memória em cima da minha mãe, até quando caiu no poço de esquecimento do Alzheimer, em que ela só era capaz de lembrar da própria juventude, do pai e da mãe.

Somos de outra geração, feita para estudar e trabalhar. Recebemos conselhos de não nos casarmos cedo, nem de termos filhos logo e mesmo assim esses exemplos continuam nos assombrando, porque é muito tênue o fio que nos faz cair para fora do jogo. Que nos acomoda dentro da casa, que nos dificulta a retomada profissional, a continuidade dos estudos.

Ser mãe na pandemia é lidar com tudo isso, só que em confinamento, sem escola, sem outras crianças, sem passeios para desanuviar a rotina. É ter que dar conta de tudo que já era difícil e ainda carregar a culpa do excesso de TV e da entrada no mundo dos jogos de celular. É sentir a terrível impotência por não dar conta de tudo. Por não ter energia para brincar, por dormir mais um pouco de manhã enquanto a criança toma café sozinha na sala, assistindo TV.

E quando as mães que precisam trabalhar e estudar e dar conta de todas as outras coisas na pandemia questionaram o porquê de manterem abertos os serviços não essenciais (bares e shoppings) e fecharem os essenciais (escolas!), tiveram que ouvir que “as mães não aguentam os próprios filhos”, “querem se ver livres deles”, “acham que escola é creche”, “acham que professor é babá”, “querem terceirizar a educação dos próprios filhos”.

E, não bastasse isso, a cereja do bolo é que sempre tem aquela mãe perfeita trazendo o pesadíssimo balde de moral e bom senso que só ela tem, para jogar em cima das mães mortais, dizendo que jamais mandaria os filhos para a escola na pandemia, que a família está isolada no sítio com os cachorros, aproveitando esse momento único cuidando da saúde e brincando com os filhos na natureza, porque isso é o certo.

Reconhecendo o quanto ainda sou privilegiada por poder ficar não no maravilhoso sítio-com-cachorros e ar livre à vontade, mas ao menos em segurança no nosso mini apartamento, evitei reclamar e ficar chateada esse ano inteiro sendo mãe-que-trabalha-e-estuda-na-pandemia. Evitei reclamar e procurei ver tudo que tínhamos a agradecer – e temos muito. Fazemos artesanato sempre que o tempo livre permite. Procuro ler historinhas a noite, para não perder o hábito – antes líamos a qualquer hora do dia, agora é muito mais difícil encontrar tempo. E mesmo assim, estamos longe de uma rotina totalmente saudável.

Muitas mães perderam os empregos, afinal, quem fica com as crianças, sem escola, para as mães trabalharem? Algumas terminam se vendo obrigadas a colocar alguém da rede de apoio em risco, que olham as crianças e que acabam tendo contato com as mães que trabalham fora. Mas há outro jeito?

Eu passei o ano inteiro tentando não falar sobre isso, tentando levar a filosofia do “está dado”. Me matriculei nas disciplinas da faculdade sabendo que talvez não desse conta de tudo. Respirei fundo sempre que acumulei mais coisas do que era humanamente possível fazer diante dos prazos, mas que eu precisava fazer. Dormi duas horas por noite por uma semana inteira e em seguida, caí doente.

Para quem tem nos estudos boa parte do sentimento de realização pessoal, ser mãe é sempre muito mais difícil, porque o exercício intelectual não tem hora, não tem fim. E eu sempre penso se vale a pena continuar estudando, estudar, que é parte da minha identidade, que é uma das coisas que me fazem sentir pertencente a mim mesma. E eu me questiono isso. E me questiono se vale a pena continuar trabalhando, mesmo sabendo que detesto depender financeiramente de alguém – e nesse momento, sequer poderia me dar ao luxo. Mas só me pergunto isso porque sou mãe-na-pandemia. Porque sou mãe.

6 thoughts on “Ser mãe na pandemia”

  1. Oi Alexandra!

    Acho que muita gente tentou se manter positivo e levar a vida do jeito que dava sem reclamar. Mas a pandemia já dura mais de um ano e acho que todo mundo tem o direito de sentir essa mudança de vida de alguma forma. E extravasar. Que bom que você conseguiu escrever esse texto. A princípio pode não parecer muito, mas só de colocar no papel (ou numa tela azul), já pode trazer um certo alívio.

    E gostei muito de saber sobre essa crise existencial materna (não que seja bom rs). Mas é algo que não é muito comentado. A gente só escuta sobre cansaço físico e como a rotina muda. Mas acho que essa crise mental é muito mais significativa e duradoura. E juntando isso ao esgotamento físico e ter a preocupação de cuidar de uma criança. Nossa eu já me sinto cansada só de imaginar!

    Te desejo força e MUITA paciência, porque não anda fácil sobreviver nessa pandemia ♥

  2. O sentimento de culpa é comum, por aqui. muitas vezes fico me sentindo culpada por não ter paciência em certos momentos, por não ter pique pra brincar.. Mas acho que temos que aceitar que somos humanas, afinal, né?

    amei o seu texto e a forma como você colocou no papel esse sentimento tão complexo, coisa que eu já tentei explicar e não consegui, rs.

    1. Obrigada, Emy! Eu gosto de compartilhar esse tipo de inquietação e pra mim é sempre bom quando encontro uma mãe que compreende isso. Acho que a gente humaniza o sentimento quando compartilha e percebe que outras pessoas se sentem assim. Tornamos menos pesado também.

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