Crônicas Imersão

Niilismo, entusiasmo e os horizontes de sentidos

“Life is a tale, told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing . Macbeth, Shakespeare

Quando Macbeth, personagem de Shakespeare, diz a célebre frase “a vida é um conto, narrado por um idiota, cheio de som e fúria, que não significa nada”, ele tinha acabado de receber a notícia da morte da esposa. Lady Macbeth o tinha encorajado a cometer uma série de atrocidades contra amigos e inimigos, tudo com o objetivo de conquistar o poder. Quando ambos estão beirando a loucura, atormentados pelas vítimas que fizeram no passado, a mulher decide se suicidar e a vida de Macbeth vira uma história sem significado.

A negação ou a busca do sentido da vida é algo de que a literatura está repleta. Mas, na vida real, não é preciso sofrer tragédias shakespearianas para experimentar a sensação de vazio existencial. Todos nós nos questionamos se o que vivemos, o que sofremos, se as coisas pelas quais lutamos, valeram a pena. E se chegarmos à conclusão de que foi tudo em vão? De que nossos sonhos e crenças não passavam de ilusões? Para Macbeth, trágicas ilusões…

O niilismo

O filósofo Friedrich Nietzsche chamou atenção para a morte do sentido da vida, dando-lhe o nome de niilismo (palavra que vem do latim nihil, ou seja, nada). Para ele, o niilismo acontece por duas características essenciais da sociedade moderna. Uma delas é a percepção das contradições entre o cristianismo e a realidade experimentada: quando aos questionamentos humanos não há uma resposta satisfatória dada pela moral cristã, torna-se difícil acreditar em uma existência metafísica, com um sentido e um fim a ser atingido. Assumimos então a ideia desestabilizadora de que viemos do nada (e não de Deus), existimos para o nada (e não para os preceitos cristãos) e para o nada voltaremos (e não para a vida eterna), o que Nietzsche resumiu na famosa frase “Deus está morto”.

Por outro lado, a perda de sentido da vida também ocorre como resultado da racionalidade científica que pauta boa parte dos valores dessa sociedade, quando preza excessivamente pela rigidez da razão, pela lógica e pela procura por verdades absolutas, mas despreza o prazer, a criatividade, o excesso, o jogo, um pouco de loucura e de caos, essas coisas tão intrínsecas à natureza humana. Em suma, o problema está no fato de que tanto a moral cristã quanto a racionalidade científica se apoiam naquilo que está além da nossa existência, em muletas metafísicas: Deus (moral cristã) e o progresso (racionalidade científica).

O entusiasmo

Mas além da experiência humana da negação do sentido das coisas, nós somos capazes de experimentar o entusiasmo. Essa palavra, entendida comumente como um estado de espírito otimista, significa literalmente “em Deus”, em grego. No sentido original, tinha a ver com inspiração ou possessão divina, ou ainda, ter o deus dentro de si. Pela etimologia e pela sensação provocada, eu entendo entusiasmo – muito mais do que um arrebatamento ou uma alegria exagerada – como um estado de criação, em que a gente se sente verdadeiramente capaz de realização e de ação sobre o mundo.

Quando crianças, somos puro entusiasmo e a maneira como percebemos e significamos as coisas é mágica. É nessa época que vivemos livremente a criatividade incontida, o jogo, o prazer sem comedimento, o excesso, o caos. Por alguma razão, quando penso no sentido da vida, retorno justamente à infância. Lembro das viagens de carro, quando eu olhava o horizonte recortado por montanhas e desejava viver o futuro. Imaginava, então, que o futuro era alcançar aquela beleza, a beleza daquelas montanhas. O futuro era chegar até a grandiosidade daquele horizonte que nunca chega e que nunca acaba, porque da perspectiva da estrada estamos sempre em direção a algo.

O desencantamento

Adultos, no entanto, sofremos o desencantamento, o fim da magia, a perda de sentido: o futuro chega e não traz nada do entusiasmo daquelas viagens, daquele horizonte. O futuro não se revela o caminhar incessante com destino a coisas bonitas e elevadas. Na verdade o futuro traz uma ansiedade crescente. Quando o futuro chegou, vi a própria experiência da vida como uma linha do tempo encurtada, como se dos vinte aos cem anos ela estivesse fadada a ser sempre plana e igual. Como se no mundo tudo já fosse conhecido, a terra tão redonda e compacta, sem possibilidade para horizontes infindos de belezas inalcançáveis, e ao mesmo tempo possíveis.

Na altura desse desencantamento, li A idade da razão, romance da trilogia Os caminhos da Liberdade, de Jean-Paul Sartre. Essa obra, de um niilismo-existencialista, marcou a minha vida. Encontrei então um personagem que, com sentimentos tão familiares aos meus (o fracasso com a expectativa do futuro e o consequente vazio existencial), dizia: “o futuro morreu”.

Voltando aos propósitos originais

Escrever para falar com o mundo, criar para me inspirar e quem sabe levar inspiração para outras pessoas, ver e viver toda forma de arte, contemplar a natureza em silêncio e em paz e viajar para ver os horizontes não como distâncias calculáveis, finitas, mas como belezas possíveis de alcançar; viver e continuar em frente pelo sentimento de manter-se viva, criativa e caminhante. Esses são os meus propósitos infantis.

Voltei a eles para encontrar o entusiasmo perdido e essa foi a solução a que eu cheguei para superar a perda de sentido da vida. Mas Nietzsche já havia chegado a essa conclusão antes e disse “a maturidade do homem: isto significa ter reencontrado a seriedade que se tinha ao brincar quando criança”. A criança é livre para criar e é dessa forma que o filósofo fala sobre a importância do retorno à infância para a busca de significado e construção de novos valores para a própria existência.

Os sentidos do horizonte

Ainda que seja necessário, de tempos em tempos, questionar os significados do que vivemos para revisão de nossos próprios conceitos e ideias, o sentimento de negação, que atinge todos os aspectos da vida, do íntimo ao político, pode levar à perda de propósito e ao vazio existencial. Entretanto, quando somos capazes de superar a passividade provocada pela perda de sentidos, assumimos uma atitude de afirmação da vida e partimos para a construção de novos significados e valores para a existência.

Isso é entusiasmo, para mim. E ainda é niilismo, para Nietzsche: um niilismo completo, que encontra a “vontade de potência” humana. Esse conceito expressa o contrário da negação: é a afirmação pura, um eterno dizer-sim. É o poder humano de dar sentido à vida, superar antigas tradições e criar valores próprios.

A ideia do horizonte é insólita, mas está cheia de sentido, a ponto de até hoje ser a principal memória capaz de simbolizar meus propósitos de vida. O que está por trás dessa imagem? Um desejo nascente em descobrir o mundo e alcançá-lo, conhecê-lo, expressá-lo. Essa ideia exploradora, investigadora, que me persegue desde a infância, se desdobra hoje em inúmeras escolhas, ações, atitudes, e estava lá, naquela criança que olhava o horizonte.

Se a vida é criar sentido, é uma boa analogia que ela seja um conto, como Macbeth presumiu; uma invenção, uma ficção. Mas esse conto não precisa ser narrado por um idiota, nem deve ser vazio de sentido. Como autores e personagens de nós mesmos, devemos retomar o infindável poder de criar e recriar-nos, da melhor e mais elaborada forma possível: “eternamente-criar-a-si-próprio, eternamente-destruir-a-si-próprio”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *