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Espírito literário

Quando eu estava no 2º ano do ensino médio, estudei em uma escola em que a biblioteca era improvisada. As estantes ficavam coladas na parede de uma sala pequena e uma professora fazia bico de bibliotecária nos intervalos de aula, sentada em uma mesa de madeira antiga, onde anotava os empréstimos num caderno brochura grande.

O improviso gerava dois problemas: ou a biblioteca passava bom tempo fechada ou ficava aberta sem ninguém para tomar conta. O segundo problema muito me agradava.

Eu tinha saído de uma escola que tratava seus estudantes de maneira distante e desconfiada e a biblioteca seguia essa linha de relacionamento. Não era um ambiente gostoso. Aliás, nada era gostoso naquele lugar em que a diretora um dia me olhou de cima a baixo e disse “que roupa ridícula, mocinha”, na frente de um punhado de adolescentes “bulinadores” na hora do intervalo.

Mas a biblioteca conseguia ser mais desestimulante. Na sala cinza e asséptica, não era possível acessar as prateleiras de livros, portanto era preciso pedir a obra para a bibliotecária fria atrás da bancada, o que impedia a experiência de olhar, passar os dedos, cheirar, abrir aleatoriamente e cair em êxtase ao ler uma passagem qualquer de um livro desconhecido ou sentir a boca aguar com algum título instigante.

Na escola nova a biblioteca era minha. Eu sentava no chão empoeirado da sala escura e entontecia com todos aqueles livros à minha disposição. A diretora tinha tido a brilhante ideia de deixar uma poltrona velha nessa sala, uma maravilha reclinável e extremamente confortável, em que eu sentava regulando a melhor posição e ali reinava solitária por horas e perdia o tempo, perdia aula, perdia o horário de ir para casa.

A biblioteca improvisada, de prateleiras abarrotadas e desorganizadas, que servia de depósito para objetos antigos, era meu lugar favorito.

***

Numa época obscura da minha vida, fui acometida por um mal que eu mesma diagnostiquei como TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo – literário.

Eu estava no início da leitura de O fantasma da Ópera quando meu disco foi engolido e fiquei repetindo, repetindo e repetindo a leitura do mesmo parágrafo sem conseguir avançar. As letras eram um código neutro, que entrava na minha cabeça sem fazer sentido, apesar de tudo parecer tão simples, então eu me forçava a reler as palavras a ponto de nausear.

Em certa altura, me dei conta de que não estava lendo, mas sim macerando meu cérebro e torturando minha mente na tentativa ridícula de fazer uma leitura profunda e bem feita. Não totalmente derrotada, abandonei o livro e fiquei meses sem ler nem um sequer. Um dia abri uma gaveta e ele estava lá, me esperando velho e paciente.

Decidi retomá-lo sem possibilidade de paradas para certificação de entendimento e proibida de reler parágrafos. Engavetei a obsessão perfeccionista e o bloqueio se desfez.

O livro é sempre o mesmo, afinal, mas a leitura não, assim como a gente.

Criei meu princípio de que os livros têm hora. Se eu sinto que não entrei na vibração da história, que ela caminha lenta e pesada, deixo estar. Às vezes é só uma questão de saber respeitar o momento certo do encontro.

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